A Unidade da Esquerda
Tribuna de Petrópolis
I - 08 de março de 2003
É impossível a esta altura se falar em “a unidade da Esquerda” pelo simples fato de que a definição do que seria a Esquerda se perdeu... Definições toscas, baseadas em concepções atuais de uma só vez neo-liberais, diletantes e anarquistas, afirmam que a “Esquerda” é somente a luta revolucionária da classe operária, com a finalidade de implantar a “ditadura do proletariado”: como esta experiência já teria existido na história e "não deu certo", então segue-se que a Esquerda não existe mais, ou não tem mais sentido!
É preciso não esquecer que Marx foi o primeiro a dizer que "não sou marxista". Suas análises sobre o papel preponderante da classe operária nas lutas anti-capitalistas, são uma parte do marxismo, e o marxismo uma parte das "lutas de Esquerda". *
Quando de nossa experiência em fazer um despretensioso seminário sobre Marxismo no Centro de Cultura ao final de 2001, esse tipo de incompreensão [se revelou] *** no noticiário jornalístico, onde "marxismo" foi confundido com "bolchevismo", tal como acima, e da parte de um proeminente divertido membro da classe politica local, que achou o seminário uma piada, talvez por jamais ter lido uma linha de Ciências Sociais a sério, imaginando que fossemos ali trazer as FARC para a Praça da Águia.
A definição de "esquerda" é tão simples quanto possa caber na mente de um colegial -- a Esquerda é a luta pelo Socialismo, é a crítica e análise sistemática da sociedade capitalista ou burguesa, visando sua superação. E o Socialismo é simplesmente o planejamento e controle, por parte de um Estado bem constituído, dos meios e dos projetos de produção, o controle da moeda e do capital em geral. Isto está em oposição à tese, e ao fato real, de que os capitalistas controlem a produção, também determinada pelo "mercado". Entretanto, não há nenhuma incompatibilidade entre o estado socialista e o pequeno mercado, o mercado informal e a pequena propriedade privada.
O que a maioria das pessoas imediatamente pensa atualmente desta definição é que neste caso o estado seria uma "ditadura" -- A questão da democracia, da representatividade e da transparência do Estado Civil é uma nova questão dentro da primeira, e requer, por sua vez, o desenvolvimento de novas lutas. Não há nada que prove que o Estado Socialista não possa ser representativo e democrático, apesar de bolcheviques, maoistas, etc, terem implantado ditaduras socialistas. A originalidade do pensamento marxista, e dos pensadores utópicos, e de Proudhon, está na análise de que a democracia, os direitos humanos, a riqueza econômica real, e o humanismo cristão (isto é, o "comunismo") têm toda a chance de serem alcançados numa sociedade com a vida econômica (sua parte mais significativa) estatizada e planejada, ao passo que na sociedade capitalista-burguesa estas condições estão intrinsecamente vetadas e pervertidas.
O pensamento liberal acreditou afertar à humanidade no séc. XIX o ideal de uma República burguesa, na qual todos estes ideais humanistas mencionados poderiam ser alcançados através de um Estado mediador, fiscal, judicial. Ora, se este estado liberal puder um dia ser alcançado é algo que ainda se está para ver, é bastante duvidoso, talvez seja concepção a ser mantida a nível meramente teórico. De qualquer forma, tal Estado mediador e fiscal criaria uma duplicidade na sociedade quanto ao controle e planejamento da economia, de modo que a "burocracia inútil" está muito mais associada a este Estado, do que ao Estado planejador, ao contrário do que é moda afirmar.
O "Capitalismo Real" todavia, em duzentos anos o que trouxe foi o monopólio, o oligopólio, o mega-oligopólio, e o pior de tudo, o planejamento político para dominação imperial por parte dos mega-oligopólios, a exemplo do governo paralelo montado pelos baqueiros londrinos ao final do séc. XIX, a Távola Redonda, assim como seu derivado no séc. XX, o Conselho de Relações Exteriores dos super-poderosos banqueiros oligopolistas Rockefeller, ao qual servem governantes estadunidenses, a exemplo do bisavô, avô, pai e filho Bush (que de loucos nada têm, fingem-se de patriotas loucos para executar planos de xadrez friamente calculados).
A idéia de "estatização" só pode ser vista como despótica, repito, em condições eventuais, ao passo que a idéia de que o "mercado" combina com "liberdade", é um contra-senso: intrinsecamente o Mercado permite o fim da liberdade, por meio da apropriação das riquezas e da força de trabalho. Alguém pode pensar, por exemplo, que as riquíssimas jazidas de metais, diamantes e minérios de Minas Gerais possam pertencer a alguém que não o Estado?? Trata-se, portanto, de estatizar primeiro estas riquezas, para em seguida se lutar pela representatividade deste Estado nos termos da sociedade e da nação. (Já o sr. Jânio Quadros lutava contra a apropriação de nossas jazidas pela companhia norte-americana Hanna, saindo-se perdedor ao final, e a Hanna ganhadora, com os militares de 1964).
O segundo aspecto original do pensamento marxista foi ter pensado o capitalismo estruturalizadamente: ou seja, tudo que se faz na sociedade, que é capitalista, é atravessado pela condição do capital. A República burguesa e sua liberdade são compradas tantas vezes quanto necessário. E assim é a lei, e os juízes; as academias e os pensadores. Na vida pessoal, se uma pessoa "tem dinheiro", é respeitada, não importa se obteve a riqueza de forma anti-ética. Se uma pessoa "não tem dinheiro", é difamada, não importa se produziu algo de útil para a sociedade, algo não comprável. Os militares trabalham a soldo. Se um governante é bem visto, é porque fez obras. Para fazer obras ele precisa de - ? Dinheiro! Se não tem verba, como pode o politico governar na sociedade burguesa? E para vencer eleições é preciso "dinheiro"... e de onde vem o dinheiro, do Estado? Não! vem dos grandes capitalistas que, já há muito, compraram exatamente a própria moeda e acumularam numa ordem centena de vezes superior aos estados, e médios empresários.
Tudo é enfim avaliado em termos do "preço que tem". A própria Ciência Econômica é reduzida a uma matemática do capital, expresso num valor de moeda (o dólar internacional), e não nas condições sociais e políticas da produção. O capital é meio prático, é a condição simbólica, e é o que está sempre no imaginário - o capital é toda a "estrutura" (no sentido antropológico).
A questão da "unidade da esquerda", portanto, deveria passar pela questão primordial da defesa do Socialismo. A defesa da democracia, as lutas anti-autoritárias, a conquista do Estado, a luta nos partidos políticos, ou fora deles, deveriam ser vistas como instrumentos desta definição. A não compreensão clara desta proposição é o que leva à grande confusão política nos partidos "de Esquerda"...**
* Com o tempo, e o uso, todas as expressões, por mais legítimas, se tornam chavões insustentáveis.... Assim é com "unidade-da-esquerda", "marxismo", "estruturalismo"... Não há como se evitar este efeito, senão se redefinindo sempre, e retomando criticamente os termos históricos. O mesmo ocorre com "virtualidade", "algébrico", "hiper-dialética", que (por enquanto!) são apenas novos conceitos requisitados pela crítica filosófica das "ideologias".
Em 2003, a idéia da Unidade-da-Esquerda não parecia um chavão tão terrível, como agora: de modo que nesta nova edição 2014, a expressão ganhou muito mais "aspas" que no original!
** Conforme ficou evidente em todas as eleições, disputas e refundações dos partidos reformistas brasileiros desde 2003 até 2014.
Em 2015 parecemos mergulhar no ano de 1985, de modo que 30 anos de História do Brasil podem ter sido Ilusão.
*** É necessário o mais rigoroso "revisionismo" neste caso [isto é, a mais sincera "auto-crítica" marxista-leninista, pragmática e ortodoxa]: Em perspectiva, os editores [e direção] da Tribuna foram bondosos ao abrigar, durante anos, numa página 2 sobrecarregada de reacionarismo e pieguice, nossos artigos "marxistas"...! Creio que foi muito mais de nossa responsabilidade a não distinção jornalística entre "marxismo acadêmico" e "marxismo bolchevista"... Temas como a unidade da esquerda deveriam ser encaminhados a revistas de militantes, não para a Tribuna. Para os jornais da cidade é melhor que os ativistas encaminhem artigos de fundo prático social-democrata [reformista], sobre costumes e demandas, etc. Artigos esquerdistas nos principais jornais apenas servem para deixar a "reação" de sobreaviso... [e aumentar a ficha do cidadão nos studios de espionagem].
II - 16 de março de 2003
Atualmente, a idéia de "esquerda" é vagamente associada à idéia de defesa do "povo", defesa da "igualdade", e anti-autoritarismo ou defesa da "democracia". A condição estrutural do capitalismo, conforme a análise marxista, implica que cada uma dessas proposições são, seguidamente, subordinadas pela relação com o capital e a divisão social do trabalho. A autoridade sutil do dinheiro é muito mais difícil de ser vencida, por ser anônima, do que, digamos, a de um déspota que se expõe e que gera a contradição localizada e imediata.
Norberto Bobbio, por exemplo, em seu Direita e Esquerda (Ed. Unesp, 1994) discute várias distinções empíricas entre os dois termos do título: autoritarismo vs. liberdade, elitismo vs. igualdade, fascismo vs. democracia; sem discutir a distinção essencial sociedade burguesa vs. socialismo, isto é, sem fazer a leitura marxista, e com isso suas análises resultam inócuas.
No interior de sua hermenêutica geral da sociedade burguesa-capitalista... Karl Marx percebe que as classes operárias, acima de tudo, e as classes trabalhadoras organizadas em geral, seriam as principais interessadas, e o esteio político natural, para a modificação da sociedade burguesa, nos termos de seu modelo de análise já bastante conhecido como modelo dialético. Quando nos referimos à revolução bolchevique de 1917 como não sendo um modelo exclusivo para o que se considera "marxismo", isso deve ter em primeiro lugar um sentido "irônico" (tal como bem observado por Adilson de Castro). Atualmente, quanto mais ouvimos tantos críticos tentando se livrar do "marxismo-leninismo" (tal como nos Seminários de Marxismo, de 2001) mais nos parece certo o quanto uma percepção leninista da realidade política é justamente o que mais falta, por efeito de seu recalque forçado. É preciso, sem dúvida, "organizar os trabalhadores", o que é uma palavra-de-ordem mais abrangente que simplesmente "o povo no poder é a ditadura do proletariado". Em segundo lugar, a afirmação marxista da necessária hegemonia das classes trabalhadoras no processo de transformação da sociedade deve ser observada em seu caráter generalizador. A revolução de Lênin continua sendo um exemplo, uma possibilidade entre tantas.
Para citar um exemplo claro, que parece terrivelmente difícil para muitos dos militantes do PT compreender, o Getúlio Vargas de 1954 não é o mesmo que o de 1945, que não é o mesmo de 1937, e que não é o mesmo de 1930. Em 54 Vargas dá, em sua Carta-Testamento, um sentido esquerdista ao PTB, que este antes não tinha. Por que Vargas evolui de um sentido de revolução liberal, para um modelo fascista e peleguista, e depois abre uma brecha para a revolução anti-imperialista? Porque ele não representa a si mesmo, mas antes, as forças da sociedade que estão em jogo. Não apenas análises dialéticas se dispõem a explicar essas dinâmicas, mas, num sentido filosófico mais complexo, que serve às ciências humanas, também aquilo que atualmente se entende como "lógica paradoxal".
A defesa arraigada da "democracia" e do igualitarismo, tanto pode contribuir para a superação da sociedade usurária, capitalista e exploradora do trabalhador, como pode atenuar a mudança, colaborando para a estagnação. O que acontece quando o povo vota em Enéas e não no PCdB? O que acontece quando a democracia eleitoral dá o poder, não àqueles que defendem o interesse econômico real do povo, mas somente seus interesses localizados, na base do clientelismo e da religião? O que acontece quando o povo quer o Faustão?
Não se pode provar que seja impossível que um determinado regime, que se inicie de forma autoritária, para mudar o modo de produção, venha, em seguida, a se tornar democrático e representativo, tal como no modelo dialético mais simples. Entretanto, é verdade também que alguns estados socialistas despóticos de nosso tempo se transformaram em capitalismo de estado, máquinas imperiais, e monarquias. É necessário, portanto, reconhecer aqui a dinâmica das estruturas sociais num devir que, além das lógicas racionalistas, positivistas, e dialéticas, nós reconheceríamos como "paradoxal".
O mesmo raciocínio se dá para o assistencialismo, e a prática humanitária-cristã, que parecem transfigurar neste momento certos discursos "socialistas". É claro que uma cultura de mudança pode surgir junto aos assistencialismos. Entretanto, o que dispomos empiricamente são sub-culturas de clientelismo organizado e ações atenuantes que não afetam o status quo.
É necessária assim uma lógica mais abrangente para tratar da análise do capitalismo e de suas possibilidades de mudança, que não a lógica puramente dualista, ou a lógica dialética de Hegel. Esta lógica é também conhecida como hiperdialética. [Conforme a tese do prof. L.S.Sampaio no seminário de 2001].
Num sentido amplo a classe operária tanto é oposta à classe burguesa, quanto é seu complemento sistêmico. É possível que uma sociedade organizada por uma elite de trabalhadores governantes se torne um retrato menor da própria sociedade burguesa. É possível que o compromisso com a sociedade burguesa seja mantido só até o último desenlace da assim chamada "correlação de forças", que permitiria enfim a mudança no modo de produção. É possível que forças não pertencentes à classe operária efetuem ações decisivas para a mudança do capitalismo.
Trata-se assim de se escapar dos dualismos fáceis e dos jogos mecânicos de interpretação, em função dos modelos de contra-ponto, negação e superação simultâneos.
A tese da "unidade da esquerda" passa dessa forma por uma determinação moral em modificar o modo de produção em todos os níveis, seja na política institucional, na administração de máquinas governamentais, na ideologia, ou nos costumes. Não verificar o capital como medida das coisas. Tratar das causas da exploração, da violência e da miséria, não apenas de seus efeitos visíveis. Usar o conhecimento para identificar e reforçar as tendências reais de mudança. Transformar os projetos de utopia em práxis, tomando o trabalho de Marx e Engels como exemplo, não como cópia.